O enredo do livro Road side picnic, de Arcady e Boris Strugatsky, desenrola-se num
dos seis locais na Terra onde teriam ocorrido visitas extraterrestres. Estranhamente
essas visitas não foram presenciadas por ninguém das comunidades vizinhas, nem
sequer os meios em que chegaram ou partiram os alienígenas. No entanto, estes
seres deixaram vestígios nesses locais, conhecidos como Zonas de Visitação. Essas Zonas
foram prontamente isoladas das populações locais; continham artefactos desconhecidos
e com propriedades inexplicáveis que apresentavam fenómenos estranhos e
perigosos, quase sobrenaturais, não compreendidos pelos humanos. Nelas, a
realidade não era nada do que parecia.
Os irmãos Strugatsky, escritores soviéticos de
ficção científica, inspiraram movimentos de dissidência nos anos 1970 e 80, no
seu país. Road side picnic, 1971,
publicado na União Soviética em 1977 (adaptado ao cinema em 1979 por Andrei
Tarkovsky com o título Stalker), foi uma
das obras mais importantes e influente nesses movimentos. À época, a ficção por
eles criada mimetizava a realidade da sociedade soviética, que vivia uma
verdade diferente da oficialmente difundida.
A hipernormalização
da SOCIEDADE SOVIÉTICA
Era claro nos anos de 1980 que o sonho original da
União Soviética, de criar um glorioso mundo novo no qual as sociedades e as
próprias pessoas seriam transformadas, tornando-se novos e melhores seres
humanos, tinha falhado. O país tinha-se tornado numa sociedade na qual ninguém
acreditava em nada ou sequer tinha alguma visão de futuro. No projecto inicial
desta sociedade socialista, os líderes soviéticos acreditavam ser possível
planear e controlar tudo, mas por esta altura já tinham percebido que isso era
impossível. O plano saiu de controle e os tecnocratas optaram por não revelar
esta evidência, preferindo fingir que tudo estava a correr bem com o plano
inicial. Surgia assim uma versão falsa da realidade.
Anos mais tarde, em 2006, o antropólogo russo
Alexei Yurchak criou, no seu livro Everything was
forever, until it was no more: the last Soviet generation, um termo para este estado da sociedade: hipernormalização. Ele reflecte a normalidade criada para além da
realidade, uma versão falsa da vida que era a realidade oficial imposta. Esta verdade
era uma alternativa simplificada e positiva. A população sabia que o que os
seus líderes diziam não era real, porque eles viam o colapso económico do país
a acontecer, mas todos tinham que fingir e agir como se fosse porque ninguém
conseguia imaginar nenhuma alternativa ao sistema vigente.
Perception Management como
dispositivo de gestão DE emoções
Em Dezembro de 1982, Israel enviou um exército
massivo para cercar os campos de refugiados Palestinianos no Líbano, com a
finalidade de destruir a Organização de Libertação da Palestina (OLP). Dois
meses depois, milhares de refugiados palestinianos foram massacrados nos campos
de Sabra e de Chatilla, numa acção militar israelita e de uma facção cristã
Libanesa que chocou o mundo. Perante o horror e o caos crescente na região o
presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, anunciou que os Marines iriam
para Beirute liderar uma força de manutenção de paz.
Apesar de Reagan insistir que as tropas eram
neutrais, o presidente Hafez al-Assad da Síria, pai do actual presidente,
acreditava existir outras motivações. Ele viu as tropas no território como parte
de uma conspiração antiga, e crescente, dos Estados Unidos e de Israel para
dividir o Médio Oriente em facções, destruindo assim o poder Árabe. Por todos estes
motivos, Assad decidiu tirar os americanos do Médio Oriente. Para essa campanha
ele estabeleceu uma aliança com a nova força revolucionaria do Irão do Aiatolá
Khomeini. Desta aliança, Assad adoptou uma nova arma recém criada pelos
iranianos e utilizada quando o país fora atacado pelo Iraque, conhecida como a
“bomba atómica dos pobres”, o bombista suicida.
Em Outubro de 1983, dois bombistas suicidas
fizeram-se explodir em camiões contra acampamentos de Marines em Beirute,
matando 241 norte-americanos. Os membros pertenciam a um novo grupo que nunca
ninguém tinha ouvido falar, o Hezbollah.
Apesar de grande parte dos membros do Hezbollah fossem iranianos, o grupo era
controlado pela Síria e pelos seus serviços de inteligência. Quatro meses após
esta ocorrência, todas as tropas norte-americanas foram retiradas de Beirute.
Esta foi uma enorme conquista para o presidente Assad.
Em face desta humilhante derrota no Líbano, o
governo do presidente Reagan necessitava, em plena Guerra Fria, tornar-se o guardião
da luta do bem contra o mal, mantendo a imagem de defensor dos valores do
Ocidente, da Liberdade e da Democracia. Para que isto acontecesse era
necessário criar um vilão. Um inimigo imaginário, um falso mestre terrorista, que
pudesse ser o objecto de foco e, dessa forma, desviar a atenção da realidade
complexa das politicas no Médio Oriente. O candidato ideal a vilão era o
Coronel Muammar al-Gaddafi, presidente da Líbia. Em meados dos anos de 1980, Gaddafi
era uma figura isolada, sem amigos ou influência global.
Em Dezembro de 1985, dois ataques terroristas
simultâneos atingiram os aeroportos de Viena e de Roma, matando 19 pessoas
incluindo cinco norte-americanos. Quase de imediato o presidente Ronald Reagan anuncia
que o Coronel Gaddafi era o responsável pelos ataques. Porém os serviços de
segurança europeus, que investigaram os ataques, estavam convencidos que a Líbia
não estava envolvida mas sim a Síria. Apesar de não haver evidências do envolvimento
de Gaddafi nos ataques, ele não fez questão de se demarcar deles, tornando o
caso mais complexo, transformando-o numa crise global.
Este foi o início de uma longa campanha que criou
uma poderosa imagem, para o Ocidente, de Gaddafi como um vilão global que
liderava um “Estado Criminoso”. O Coronel usou esta publicidade, dada pelos
americanos, de forma dramática, construindo para si uma imagem de temido e poderoso
líder revolucionário internacional, que tinha por missão libertar os povos
oprimidos. Os Estados Unidos e Gaddafi ficavam desta forma presos num ciclo de reforço
mútuo e assim foram construindo um mundo ficcional.
Um novo ataque terrorista ocorrido numa discoteca
em Berlim Ocidental matou um soldado norte-americano e feriu centenas de
outros. De novo não havia provas que suportasse a teoria da culpabilidade de
Gaddafi mas havia provas do envolvimento da Síria. Mas tudo foi manipulado pelo
governo dos Estados Unidos por forma a que, finalmente, a Líbia fosse atacada. Assim,
em Abril de 1986 os norte-americanos demonstraram o seu poder sem ter que
enfrentar as perigosas consequências de atacar a Síria.
O que a administração Reagan fez com a Líbia do
Coronel Gaddafi foi uma mistura de realidade e ficção. Este cenário construído
fazia parte de um plano maior a que os conselheiros do presidente deram o nome
de Perception Management (manutenção
de percepção). O objectivo era contar histórias dramáticas que capturassem a
imaginação da opinião pública, sobre todos os assuntos e países nos quais os
Estados Unidos tivessem interesse ou necessidade de manipular. Não interessava
se as histórias eram verdadeiras ou não, desde que desviassem a atenção das
pessoas e evitassem os políticos de explicar as complexidades do mundo real. A
realidade tornava-se um factor cada vez menos importante na política
norte-americana nos anos de 1980. Era apenas algo com que tinha que se lidar e
tudo era justificável desde que se atingisse o objectivo final.
A maior conquista do Perception Management foi atingida quando, como resultado colateral
da invasão do Iraque no pós 11 de Setembro, foi pedida ajuda ao Coronel Gaddafi
transformando-o agora como o novo melhor amigo e herói das democracias. Desta
vez não apenas os políticos estiveram envolvidos no processo. Para esta
redenção ter efeito houve a colaboração de espiões, relações públicas, apresentadores
de televisão, académicos e músicos. Todo o establishment
ocidental se tornaria cúmplice deste falso mundo.
Vladislav
Surkov e o Avant garde da alienação
de massas
No final da primeira década do novo século, o
Ocidente debatia-se com problemas estruturais e falta de visão política no
futuro. A entrega excessiva de poder às instituições financeiras e grandes
corporações levaram à despolitização interna da vida pública, enquanto as visões
simplistas do mundo foram expostas como perigosas e destrutivas.
Nessa época, na Rússia, havia um grupo de homens
que via com igual descrença a política e igual incerteza o futuro; contudo,
consideravam que essa circunstância lhes poderia servir de vantagem. Para que
isso fosse proveitoso aos seus intentos, eles transformaram a política num
bizarro teatro no qual ninguém sabe o que é verdadeiro ou o que é falso. Foram
chamados de tecnólogos políticos e eram figuras centrais do estado russo,
conselheiros do presidente Vladimir Putin. A eles se deve a manutenção do poder
incontestável que Putin exerce há 15 anos.
Alguns deles são da geração de dissidentes da União
Soviética dos anos de 1970, fortemente influenciados pelas histórias de ficção
científica dos irmãos Strugatsky, que vinte anos depois, na Rússia pós-soviética,
controlam os órgãos de comunicação social e usam esse poder para manipular o
eleitorado em larga escala. Para eles a realidade é algo que pode ser intervencionada
e moldada em qualquer coisa que se pretenda.
Entretanto, um destes tecnólogos emergiu, e as suas
ideias tornaram-se centrais na consolidação de Putin no poder. O seu nome é
Vladislav Surkov. Começou o seu percurso no mundo do drama, e os especialistas afirmam
que ele adaptou ideias do teatro Avant
Garde e as levou para o mundo da política. Surkov transformou a política
russa numa constante e permanente mudança de peças teatrais. Usou dinheiro do
Kremlin para apoiar todos os tipos de grupos, desde organizações de juventude
antifascista a Skinheads neonazis; grupos
liberais de direitos humanos que atacam o governo a partidos políticos que se
opõem ao presidente Putin.
Mas a questão chave é que Surkov não escondeu
nenhum dos seus actos. O seu objectivo não é apenas manipular as pessoas, mas
ir mais além; pretende destruir a própria percepção do mundo. Um jornalista
explicou esta realidade como “uma estratégia de poder que coloca qualquer
oposição constantemente confusa numa mutação de forma sem fim, inexorável por
ser indefinível”. Entretanto o poder real está noutro lugar, bem escondido do
palco em que tudo isto ocorre, exercido sem que ninguém o veja.
o Jogo da
pós-verdade
Entretanto, a mesma coisa parece estar a acontecer
no Ocidente. É cada vez mais claro que o sistema tem falhas profundas. Todos os
meses existem novas revelações sobre o envolvimento dos grandes bancos na
corrupção mundial, a fuga aos impostos das grandes corporações ou da vigilância
secreta de emails pela Nacional Security Agency.
Porém, ninguém é acusado nem condenado exceptuando umas poucas pessoas dos
níveis mais baixos. E por trás disto tudo uma gigante iniquidade continua a crescer,
garantindo que a estrutura do poder se mantenha a mesma, porque nada pode
destabilizar o sistema.
Eis então que a forma que estava a estabilizar se
altera de novo. Essa mudança surge dos Estados Unidos durante a campanha
presidencial de Donald Trump. Ela seria diferente de tudo o que alguma vez
tinha acontecido anteriormente em política. Nada era fixo.
O que tinha dito, quem tinha atacado e como tinha
atacado, estava constantemente em mutação e em deslocação. Trump usava
discursos que poderiam ter saído dos movimentos Ocuppy assim como, ao mesmo tempo, usava o discurso racista dos
extremistas brancos de direita. Desta forma levava os receios das pessoas ao
limite, trazendo-os à luz do dia, validando-os como uma opção credível entre os
que não acreditavam no sistema estabelecido.
Muitos dos factos que Trump apontou eram falsos,
mas isso não lhe importava ou incomodava. Ele e a sua audiência sabiam que
muito do que dizia tinha pouca relação com a realidade. Esta foi a derrota que ele
infligiu ao jornalismo. A partir do momento em que o trabalho do jornalista consistia
em expor as mentiras e assegurar a verdade, a sua irrelevância destruía a sua
importância. Este é o jogo da pós-verdade, em que os factos objectivos têm
menos importância que os apelos às emoções e às crenças pessoais.
Tanto Donald Trump quanto Vladislav Surkov perceberam
que a versão da realidade apresentada pelos políticos já não era credível; as
histórias por eles contadas durante décadas deixaram de fazer sentido. Tendo
isso em consideração, é possível jogar-se com a realidade, alterando-a e
modificando-a, e nesse processo serem minadas as antigas formas de poder,
transferindo-as da esfera política para a esfera financeira.
A vida
que segue
Enquanto a Síria implode, o mundo vive aparte da
realidade desta guerra e desta região. A isso não é estranho o facto de não
interessar a nenhum dos envolvidas o real conhecimento dos factos e para tal no
campo de batalha estão a ser testadas as mais recentes formas de controle, alienação
e desinformação. A Rússia, por exemplo, está a aplicar na Síria um formato de
guerra que Surkov testou na Ucrânia durante a crise da Crimeia. O Nonlinear Warfare (conflito não-linear) é
um novo tipo de guerra na qual nunca se sabe quem realmente é o inimigo. A
intenção não é ganhar a guerra, mas usar o conflito para criar um permanente
estado de destabilização de percepção, por forma a gerir e manter o controlo da
situação. A verdade é que até agora ninguém sabe qual a justificação dos russos
se envolveram directamente nesta guerra.
Paralelamente a todas estas ocorrências reais, o
ciberespaço, antes tido como um território libertário e livre, uma renovada
esperança para a sociedade decorrente da contracultura dos ácidos dos anos 60,
tornou-se na mais fértil ferramenta de alienação e controle alguma vez criada.
É de tal forma eficiente que são as pessoas se disponibilizam para serem objectos
de controle.
A Inteligência Artificial foi criada para responder
às nossas necessidades narcísicas, satisfazendo dessa forma o nosso individualismo
crescente, fruto desta sociedade de início de milénio. Algoritmos capazes de
prever as nossas reacções ajudam-nos a criar laços confortáveis, com respostas
de satisfação imediata e sem qualquer tipo de contraditório. É um assistente
que nos compreende e nos valoriza. Conformamo-nos com a atenção que nos é dada
por uma máquina e, em contrapartida, cedemos-lhe o que de mais íntimo temos, a
nossa individualidade, sem nos questionarmos ou preocuparmos com o destino
final desses dados.
O novo processo de controle já está em marcha, e
tudo leva a crer que estamos prontos para o aceitar e assumir como parte
integrante da nossa construída, frenética e ansiosa existência. Marisa canta
que “é a vida que segue e não espera pela gente” e ninguém quer ficar fora
dessa vida, porque cada vez menos
gente tem a capacidade de criar a sua.