terça-feira, 19 de junho de 2018

TOMBOY, género e bio poder







Tomboy (2011), Céline Sciamma
Cabelo curto, roupas largas, cidade diferente e uma possível identidade nova. Este é o enquadramento da  personagem principal, Laure/Michael (Zoé Héran), do filme Tomboy (2011), de Céline Sciamma. Retrata a identidade em transformação de uma criança recém chegada a uma cidade onde as amizades ainda estão por construir. É precisamente através do contacto com uma rapariga vizinha que a história se desenrola. Lisa (Jeanne Disson) assume que Laure é um rapaz e pergunta-lhe o nome recebendo como resposta: Michael.

No campo com as outras crianças, Laure é posta à prova. A competitividade e rapidez fazem parte das brincadeiras que muitas vezes são levadas ao extremo resultando em lutas e até mesmo exclusões do grupo. Lisa não queria que isso acontecesse ao novo amigo e por isso deixou-o ganhar para que fosse aceite. Quando se cresce tem-se a perceção do quão difícil pode ser a integração e aceitação em grupos durante a infância. É-se levado a agir de acordo com ações que não espelham os valores aprendidos em casa e na escola. Tudo em nome de não ficar só, ou pior que isso, de não ser perseguido e humilhado por outros. E isto acabou por acontecer no filme, obviamente. Já lá iremos.

A idade ainda lhe permite tirar a t-shirt e jogar à bola em tronco nu como os outros rapazes. O que a natureza do seu corpo não lhe permite é fazer as necessidade fisiológicas tal como eles, de pé. Isto leva-nos para a cena seguinte onde um dos rapazes a vê e acusa “ele fez xixi nas calças!” Claro está que Laure sentiu imensa vergonha e fugiu. Depois disso voltou a reunir-se com o grupo num lago. O facto de ter de usar roupa de banho tornava tudo mais difícil. Ainda assim, não lhe faltou criatividade e a plasticina foi a solução para colocar dentro das cuecas recortadas do seu fato de banho. Com algumas manobras conseguiu passar o dia sem que se percebe-se, mas via-se o medo e desconforto de Laure. 

Em casa, é perceptível a aceitação da família perante a sua forma de ser e demonstram ter uma relação próxima através de gestos de carinho quando ela se sente frágil. A irmã mais nova ajuda-a manter a mentira e também a apoia quando está em baixo. Quem não a viu com bons olhos foi a mãe quando soube que ela tinha batido num colega enquanto se fazia passar por rapaz. Deu-lhe o duro castigo de usar um vestido e ir pedir desculpas e a seguir ir contar a verdade a Lisa — esta última foi bem mais difícil. Já se tinham beijado, eram próximas.

Já todos sabiam. Laure correu o mais que conseguia, porém foi impossível evitar que a apanhassem depois de ser vista atrás das árvores a escutar a conversa que o grupo tinha sobre ela. A cena que se segue demonstra o bio poder em ação. É obrigada a expor-se perante os olhares inquisidores do grupo de maneira a provar que afinal não era um rapaz. Lisa defende-a, porém também não escapa à humilhação uma vez que todos sabiam que se tinham beijado — e sendo ambas raparigas, era “nojento”.

Assim se passaram as férias do Verão. A escola estava prestes a começar e a exposição iria ser inevitável. O filme termina com um recomeço. Lisa volta a perguntar-lhe o nome, ao que ela responde com algum receio: “Laure”, seguido de um leve sorriso de alívio.

Tomboy aborda temas como a identidade de género e o bio poder. É inevitável falar de género sem que o nome de Judith Butler não venha a seguir. A normatividade do género e da sexualidade obriga Laure a enfrentar desafios relacionados com a sua própria identidade desde cedo. Butler refere o seguinte na conhecida obra Gender Trouble: “Originally intended to dispute the biology-is-destiny formulation, the distinction between sex and gender serves the argument that whatever biological intractability sex appears to have, gender is culturally constructed: hence, gender is neither the causal result of sex nor as seemingly fixed as sex.” Tendo em conta este pensamento, Laure estava apenas a seguir a sua natureza desligada concessões sociais do que é ser “menina”. O sexo com que se nasce não define o género da pessoa. Em oposição, está o bio poder que Foucault trabalha na sua obra A História da Sexualidade. O “poder pequenino” que é capaz de fazer com que crianças de dez anos se humilhem e julguem devido às ideias já implícitas sobre a sexualidade — como deve ser um “menino” e uma “menina.” O poder está sempre presente, a retórica é que muda e com ela surgem diferentes manifestações.

Sciamma capta essas manifestações de uma forma bastante perspicaz. Aproveita as idiossincrasias dos pequenos atores e capta as micro expressões, os olhares e os suspiros que não precisam de ser acompanhados por palavras para transmitir emoções. Isto torna o filme muito próximo da realidade espelhando mesmo a essência da infância.

Termino com a seguinte pergunta: é realmente possível ‘dessexualizar’ a aparência?
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Anabela Ferreira

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Crítica: The Handmaid's Tale (2016-)



The Handmaid’s Tale é uma série televisiva criada por Bruce Miller, baseada no romance de 1985 com o mesmo nome, de Margaret Atwood. A primeira temporada da série estreou em Abril de 2017 e, atualmente, a segunda temporada está a ser exibida.

A ação revolve em torno de uma autocracia religiosa que dominou os Estados Unidos, cujo nome foi alterado para Gilead, motivada pela brutal queda da taxa de natalidade. Neste país, mulheres são vistas como cidadãs de segunda classe, e qualquer pessoa que tente fugir será castigada. Às mulheres férteis dá-se o estatuto de “Handmaids” e, depois de serem despojadas da sua vida, nome e identidade, o seu único propósito passa a ser ter filhos. A série acompanha a personagem June, uma Handmaid que resiste a este regime enquanto tenta, simultaneamente, assegurar a sua sobrevivência. 




The Handmaid’s Tale é uma espantosa obra televisiva, com a capacidade de deixar o espectador sem fôlego e provocar-lhe sentimentos de revolta e emoção como poucas outras conseguem. Isto porque, para além do seu aterrador enredo, a série está inserida numa época em que, finalmente, assuntos como os direitos da mulher começam a ser alvos da atenção dos media. Ainda que fictícia, a obra não deixa de criticar questões sociais tão reais como controversas, como a homofobia, o abuso sexual, o racismo, a prostituição e até a pedofilia.

A série é assumidamente feminista e a segunda temporada, especificamente, aborda a importância e a essência do movimento. Do mesmo modo, existe uma certa influência da obra nos movimentos sociais: quando Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos, foram vistos na Marcha das Mulheres, em Washington, cartazes que faziam referência à história, exibindo frases como “Make Margaret Atwood Fiction Again” e uma expressão retirada do livro: “Nolite te bastardes carborundorum” (“Não deixes os bastardos esmagarem-te”). 



Numa sociedade absorvida pela media, uma série como The Handmaid’s Tale tem uma importância maior do que se presume. O aspeto que faz o coração do espectador acelerar e lhe dá arrepios, aquilo que realmente o incomoda, é o quão possível a trama da série se traduz. O cenário, por mais radical e absurdo que pareça, nunca se personifica como uma impossibilidade, pois sabemos que vivemos numa sociedade patriarcal na qual os homens estão, indiscutivelmente, no poder – e esse foi o único aspeto realmente necessário à criação de Gilead.

The Handmaid’s Tale é uma série que tem de ser vista e revista, tem de ser ponderada, mas, principalmente, tem de ser discutida. O que distingue esta de muitas outras séries de televisão feministas é que ela não se limita a levantar as perguntas: declara respostas, propõe soluções, e está determinada a ser ouvida. É, para além de uma incrível obra artística, uma ameaça de revolução; e uma que precisa de ser levada a sério.

A Mulher e a Sexualidade no trabalho de Sandra Vásquez de la Horra

Link para o trabalho académico: https://drive.google.com/open?id=1zfWDMXuziVIAqvywxpukNl5G9j4n3FHe

terça-feira, 12 de junho de 2018

Quando as palavras se tornam numa imagem



Wasted Rita é uma artista e ilustradora portuguesa que tem vindo a acumular uma enorme legião de seguidores desde que começou o seu blog “Rita Bored” em 2011. A assumida “agente provocadora nata” gosta de pensar, escrever, desenhar e dar vida a pequenas jóias de sabedoria sarcástica.
Este poster, datado de 2016, é um ótimo exemplo do tipo de mensagem que a artista quer passar: choque, indignação e algumas gargalhadas. Optando sempre por um visual minimalista, a  maioria das suas obras são compostas apenas por palavras— são ilustrações de frases ou texto que pretendem passar uma mensagem para além daquilo que lá está escrito.
A questão polémica que muita gente coloca é: Será que tudo pode ser considerado arte? Quando é que se delimita o que pode ser arte? Hoje em dia o conceito de arte é extremamente distante daquilo que era há poucos séculos, e apesar de estarmos muito mais abertos ao que é diferente, é normal que alguns se indignem com o que é claramente considerado arte por outros.
Na minha opinião, existem duas maneiras de tornar o texto uma arte:
A primeira maneira de tornar o texto em arte é através do seu conteúdo. Por exemplo, as palavras do dicionário podem ser usadas de diversas maneiras muito específicas, sendo o resultado um poema, uma carta de amor ou uma obra literária. Aqui, o foco é menos na tipografia e mais no "conteúdo" do texto. Esta primeira maneira é aceite globalmente pelo público, sendo que a maioria das pessoas consideraria facilmente a literatura ou a poesia uma arte.
A segunda maneira de transformar um texto em arte é dando ênfase aos parâmetros estilísticos, algo que pode ser considerado uma ciência, intitulada de “Fontplay".
Através da escolha de fontes diferentes, ou do desenho das palavras/frases de uma determinada maneira, podemos criar metáfora visuais, que podem tanto enfatizar o significado do conteúdo, ou até contradizê-lo, criando assim uma disparidade que, por si só, é uma metáfora.
Por vezes o modo como traduzimos para palavras a mensagem que queremos passar não é tão forte como o seu significado, sendo que neste caso o fontplay ajuda-nos a reforçar o conteúdo da mensagem.
Este é um tipo de arte muito recente, bastante presente no trabalho da Wasted Rita e que, pela sua simplicidade e aspeto minimalista, poderá criar polémica entre alguns públicos, mas é um tipo de ilustração com que as gerações mais jovens se identificam muito e que é bastante pertinente nos meios tecnológicos e de social media da atualidade.


Banksy: Arte ou Utilidade?


A arte pela arte é uma frase traduzido do francês l'art pour l'art, que foi cunhado no início do século XIX pelo filósofo francês Victor Cousin. A frase expressa a crença de muitos escritores e artistas, especialmente os que se associam à corrente Estética - que a arte não precisa de justificação, que não precisa de servir um final político ou didático. 
A arte da rua pode ser definida como uma forma de l'art pour l'art. O artista não espera ser pago e por vezes, o artista nem sequer assina o seu trabalho. 
O objetivo do arte de rua é expressar-se fora das instituições tradicionais de arte. 
A obra Christ With Shopping Bags de Banksy, criada em 2005— uma imagem em stencil que retrata Jesus Cristo com braços estendidos a segurar vários sacos de compras— obriga-nos a sermos confrontados com os conceitos opostos da ideologia cristã "pura" e a ideologia capitalista "impura". 
Esta obra de Banksy é interpretado maioritariamente da mesma maneira: Banksy está a criticar a comercialização do Natal. Em vez de se concentrar nos valores cristãos tradicionais do amor, da caridade e da compaixão, o Natal tornou-se numa altura de consumo desmedido. Todos os valores originais associados a esta época perderam-se com o passar do tempo.
Seja qual for a interpretação do público, a intenção do artista não importa. A obra de arte pode servir diferentes funções em diferentes contextos. Muitas vezes, Banksy não assina o seu trabalho, ou este existe apenas temporariamente, na rua, sendo que outras vezes apresenta as suas obras de arte num museu. 

O problema que a arte sempre teve é que a interpretação é deixada para ser fetichizada pelo espectador. Se é este o propósito que a arte serve, então não pode ser l'art pour l'art. Se é arte pela arte, não pode ser uma mercadoria— então como é que pode valer alguma coisa?

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Esboço II



À questão: Será possível pensar sem situação?

...de volta ao pomar das obras de arte dispostas ao longo do corredor, há uma de entre as outras que lhe salta aos olhos, quase como se as suas formas lhe vestissem o pensamento. E ainda sem se perguntar do porquê de tal direcção - a do seu olhar -, questiona-se de como a poderá chamar, se ela não tem nome.

Nesta aparente impossibilidade de diálogo, a obra contém em si uma possível situação estratégica (consciente) para se manter na esfera do anonimato, não fosse o simples gesto de chamar [já] um acto de poder, afim de se não querer deixar apropriar.
Optando pela estratégia do anonimato (não identificação/identidade), com o fim de fugir à 





armadilha do biopoder, a posição que virá ocupar no mundo simbólico será a de uma espécie de cidadão sem nacionalidade, ilegal (à imagem dos "sem papéis"), sem direitos no espaço abrangente do discurso criado por um Estado-poder. 






Na tentação, pela sua inocência, de se mostrar na sua nudez, na sua forma natural como um corpo ainda assexuado (mesmo no contexto de escola enquanto significante, isto, hipoteticamente), uma vez exposta, a obra de arte (se é que se pode considerar como obra de arte antes de entrar no mundo simbólico) ficará sujeita às teias das palavras, ao discurso da descrição e identificação como significado. Assim, uma vez nomeada, dificilmente resistirá à lógica do controlo panóptico do biopoder, que tudo quer controlar, desde as coisas às palavras que as definem. Esse discurso de poder que foi o contexto para a sua criação poderá ser visto como uma limitação ao objecto enquanto significante, ou será uma liberdade (ficcionada) de criação de um objecto enquanto peça que pode criar discurso.  

Como fugir a esta malha total de controlo?

Ainda na impossibilidade de a nomear ou de a descrever, a questão que se coloca é: "Compro ou não compro?"

Parece não haver outra escolha.


quarta-feira, 30 de maio de 2018

DA CAVERNA À SUBLIMAÇÃO

Ao longo da sua existência o Homo Sapiens conseguiu conquistar todo o planeta e dominar todas as outras espécies. Mudou irreparavelmente a paisagem terrestre, provocou dramáticas alterações ecológicas, extinguiu espécies e hoje tem o poder de modificar o processo evolutivo da sua própria espécie ao tornar-se dono do seu próprio ADN.

Até há cerca de 100 mil anos várias espécies de hominídeos percorriam vastos territórios do planeta em busca de alimento e abrigo. Australopithecus, Homo Habilis, Homo Erectus, Homo Neanderthalensis coexistiam com outro hominídeo sem nada de especial, o Homo Sapiens. Esse hominídeo levava a sua existência sem causar grandes impactos no mundo ou nas suas comunidades. Como todos os outros animais vivia de acordo com a sua natureza, não inovava, não quebrava regras, não transcendia a sua natureza.

Mas há cerca de 70 mil anos algo aconteceu que provocou alterações no programa existencial desse hominídeo. A esse momento de viragem chamamos Revolução Cognitiva. A partir desse período o Homem começa a pensar no mundo de uma forma abstrata. Pela primeira vez tinha a capacidade de contar histórias e ficções. O ato de contar histórias é um dos traços que mais caracteriza a humanidade, é o que nos possibilitou, ao longo da história, construir amizades, hierarquias, caçar ou lutar juntos. Ao contrário de outros primatas, como os chimpanzés, que constroem colónias de até 50 indivíduos, nós conseguimos formar bandos maiores e mais estáveis. Com as ficções surgiram os mitos, e com eles as religiões. Essa enorme transformação permitiu que grupos de elevado número de indivíduos, ligados entre si por crenças comuns, colaborassem e contribuíssem para causas maiores. O surgimento das ficções permitiu que grandes números de indivíduos pudessem cooperar se acreditassem na mesma história. A cooperação humana em grande escala depende da existência de mitos partilhados que apenas existem na imaginação coletiva. Isso permitiu que dois católicos que nunca se conheceram, por exemplo, pudessem lutar juntos nas cruzadas. Dois advogados que nunca se viram possam trabalhar juntos para defender um desconhecido, baseados num sistema judicial e mitos jurídicos partilhados. Um exemplo do quotidiano, o dinheiro. Objetivamente o dinheiro pouco valor tem. Uma nota ou uma moeda não serve para comer ou para nos cobrir. Um cartão de crédito ou débito para muito menos ainda. Mas no mito que juntos partilhamos ele passa a ser real. O dinheiro é um sistema de confiança mútua. O dinheiro é o mais universal e eficiente sistema de confiança mútua que o Homem inventou. Independentemente da religião, credo, ou cultura todos têm um grande apreço por dinheiro. Todos acreditam na sua existência. Ele é real. É esse fenómeno de contar histórias e de criar mitos que mobiliza milhões de pessoas em torno de objetivos comuns que é conhecido comoRealidade Imaginada.
Outros animais sociais, com divisão de tarefas e organizados em classes como no caso das abelhas, não têm a capacidade de se unir em torno de causas. Nessas sociedades não há regicídios nem revoluções operárias. Não há essa flexibilidade. Só a espécie humana tem essa sofisticação. Ao contrário das abelhas, o homem consegue sair da sua programação para resolver problemas e mudar o curso da sua vivência.
No segundo grande salto evolutivo, com a revolução agrícola, o homo sapiens tornou-se sedentário. Passou a cultivar os solos e a domesticar a caça. Com esta mudança deu-se um enorme crescimento populacional. O alimento era mais abundante, e eram exigidos mais braços para trabalhar a terra. Associados a esta mudança surgiram novos problemas. As secas, pragas, roubos e guerras obrigaram naturalmente ao surgimento de novas estruturas sociais, mais complexas. Surgem as cidades, exércitos, moedas, estados e um crescente fluxo de trocas entre diferentes culturas e regiões.

Em meados do século XV, com a expansão marítima europeia, o mundo transforma-se drasticamente. É o início da era da globalização e da revolução científica. O conhecimento rigoroso e objetivo dos mecanismos que regem a Natureza e o Universo trouxeram ao Homem um crescente conforto e bem-estar. Ao longo dos últimos 500 anos uma corrida pelo conhecimento e procura de soluções, que evolui de uma forma exponencial e se autoalimenta, mudou profundamente o mundo. A partir do século XIX a ciência registou enormes progressos, afastando cada vez mais o sujeito da sua experiência de vida biológica.

Presentemente, os progressos científicos e tecnológicos nas áreas da genética, biotecnologia, nanotecnologia, medicina, informática e inteligência artificial parecem conduzir-nos ao que alguns especialistas chamam a singularidade tecnológica. Este é o evento histórico, algures num futuro muito próximo, em que a inteligência artificial superará a inteligência humana, provocando alterações profundas na própria natureza humana.

Filósofos e cientistas discutem cada vez mais as questões éticas e como prevenir o que acontecerá se perdermos o controlo das nossas máquinas. Alguns estudiosos argumentam que este será o fim da humanidade. Num futuro em que as máquinas tivessem capacidades cognitivas superiores às do seu criador, e não dependessem mais dele para se auto-aperfeiçoarem, o Homem tornar-se-ia obsoleto.

Outros acreditam que após este acontecimento os sistemas computacionais tornar-se-iam autoconscientes e os interfaces homem-máquina seriam tão complexos que seria necessário um processo evolutivo, físico, do próprio homem e a ampliação da inteligência humana através da biotecnologia e da nanotecnologia. A integração homem-computador seria necessária para o surgimento de uma superinteligência hibrida. Essas alterações tão profundas levariam os humanos a evoluir para uma nova espécie biomecânica – o übermensch. Uma nova espécie capaz de superar as suas limitações cognitivas, ligada em rede, e em que o indivíduo se funde com o todo, à imagem do que acontece nas modernas redes computacionais. Uma espécie que evoluiria, uma vez mais, alcançando a transcendência ao abdicar do seu corpo e pela sublimação da mente biológica para uma entidade hibrida e coletiva.

Influência do poder na criação artística

Ainda que uma criação artística tenha, em grande parte, uma influência cultural e social, é o meio de manifestação mais próximo ao que é natural no ser humano.

Sendo suporte de ideias e conceitos intrínsecos no pensamento íntimo, privado e pessoal, a obra de arte terá sempre um tronco moldado por fatores culturais que não dependem da vontade consciente do criador, já que este também transporta consigo um manto cultural quase impossível de se desfazer (para averiguar esta possibilidade teria de se propor uma isolação do artista durante um período de tempo suficiente para se desprender da cultura e da tradição do meio social). 
Toda esta ideia de  contextualização cria os cânones da arte, que aos olhos do receptor serão os pontos fixos em qualquer noção de criação artística,  porém sendo a arte uma extensão do pensamento consciente e inconsciente, comporta uma liberdade absoluta, inconformista e quase ilimitada (pelo menos tanto quanto a imaginação permitir).  
Esta dualidade entre racionalidade e sensibilidade inerente à essência da criação, torna-se quase perigosa na medida em  que pode corromper os cânones da arte (por princípios ligados à ideia de ruptura como fator de regeneração) e expandir-se.

Falando num contexto nacional, o problema põe-se na análise da actuação do poder sobre a vertente artística. A perpetuação dos cânones da arte é quase impossível e é previsível anteceder novas formas de criar realidades transcendentes, então o poder age a favor dos cânones para camuflar a possibilidade de contágio que cada nova criação contém.
Um exemplo é o curso cientifico-humanístico de Artes Visuais no ensino secundário, um ensino público porém básico e elementar que se sustenta de noções muito convencionais e pouco experimentais. O problema talvez se ponha na pouca aposta ao campo das artes em Portugal, e no ensino secundário este campo é tratado de uma forma superficial e pouco complexa. 

Será que a pouca actuação do poder sobre o domínio das artes em Portugal se deve a este temor pela liberdade que a criação artística propõe? Será que se deve ao medo de alcançar uma realidade que se procura inconscientemente? 

PROCESSOS DE CONTROLE E ALIENAÇÃO DAS MASSAS


O enredo do livro Road side picnic, de Arcady e Boris Strugatsky, desenrola-se num dos seis locais na Terra onde teriam ocorrido visitas extraterrestres. Estranhamente essas visitas não foram presenciadas por ninguém das comunidades vizinhas, nem sequer os meios em que chegaram ou partiram os alienígenas. No entanto, estes seres deixaram vestígios nesses locais, conhecidos como Zonas de Visitação. Essas Zonas foram prontamente isoladas das populações locais; continham artefactos desconhecidos e com propriedades inexplicáveis que apresentavam fenómenos estranhos e perigosos, quase sobrenaturais, não compreendidos pelos humanos. Nelas, a realidade não era nada do que parecia.
Os irmãos Strugatsky, escritores soviéticos de ficção científica, inspiraram movimentos de dissidência nos anos 1970 e 80, no seu país. Road side picnic, 1971, publicado na União Soviética em 1977 (adaptado ao cinema em 1979 por Andrei Tarkovsky com o título Stalker), foi uma das obras mais importantes e influente nesses movimentos. À época, a ficção por eles criada mimetizava a realidade da sociedade soviética, que vivia uma verdade diferente da oficialmente difundida.

A hipernormalização da SOCIEDADE SOVIÉTICA
Era claro nos anos de 1980 que o sonho original da União Soviética, de criar um glorioso mundo novo no qual as sociedades e as próprias pessoas seriam transformadas, tornando-se novos e melhores seres humanos, tinha falhado. O país tinha-se tornado numa sociedade na qual ninguém acreditava em nada ou sequer tinha alguma visão de futuro. No projecto inicial desta sociedade socialista, os líderes soviéticos acreditavam ser possível planear e controlar tudo, mas por esta altura já tinham percebido que isso era impossível. O plano saiu de controle e os tecnocratas optaram por não revelar esta evidência, preferindo fingir que tudo estava a correr bem com o plano inicial. Surgia assim uma versão falsa da realidade.
Anos mais tarde, em 2006, o antropólogo russo Alexei Yurchak criou, no seu livro Everything was forever, until it was no more: the last Soviet generation, um termo para este estado da sociedade: hipernormalização. Ele reflecte a normalidade criada para além da realidade, uma versão falsa da vida que era a realidade oficial imposta. Esta verdade era uma alternativa simplificada e positiva. A população sabia que o que os seus líderes diziam não era real, porque eles viam o colapso económico do país a acontecer, mas todos tinham que fingir e agir como se fosse porque ninguém conseguia imaginar nenhuma alternativa ao sistema vigente.

Perception Management como dispositivo de gestão DE emoções
Em Dezembro de 1982, Israel enviou um exército massivo para cercar os campos de refugiados Palestinianos no Líbano, com a finalidade de destruir a Organização de Libertação da Palestina (OLP). Dois meses depois, milhares de refugiados palestinianos foram massacrados nos campos de Sabra e de Chatilla, numa acção militar israelita e de uma facção cristã Libanesa que chocou o mundo. Perante o horror e o caos crescente na região o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, anunciou que os Marines iriam para Beirute liderar uma força de manutenção de paz.
Apesar de Reagan insistir que as tropas eram neutrais, o presidente Hafez al-Assad da Síria, pai do actual presidente, acreditava existir outras motivações. Ele viu as tropas no território como parte de uma conspiração antiga, e crescente, dos Estados Unidos e de Israel para dividir o Médio Oriente em facções, destruindo assim o poder Árabe. Por todos estes motivos, Assad decidiu tirar os americanos do Médio Oriente. Para essa campanha ele estabeleceu uma aliança com a nova força revolucionaria do Irão do Aiatolá Khomeini. Desta aliança, Assad adoptou uma nova arma recém criada pelos iranianos e utilizada quando o país fora atacado pelo Iraque, conhecida como a “bomba atómica dos pobres”, o bombista suicida.
Em Outubro de 1983, dois bombistas suicidas fizeram-se explodir em camiões contra acampamentos de Marines em Beirute, matando 241 norte-americanos. Os membros pertenciam a um novo grupo que nunca ninguém tinha ouvido falar, o Hezbollah. Apesar de grande parte dos membros do Hezbollah fossem iranianos, o grupo era controlado pela Síria e pelos seus serviços de inteligência. Quatro meses após esta ocorrência, todas as tropas norte-americanas foram retiradas de Beirute. Esta foi uma enorme conquista para o presidente Assad.
Em face desta humilhante derrota no Líbano, o governo do presidente Reagan necessitava, em plena Guerra Fria, tornar-se o guardião da luta do bem contra o mal, mantendo a imagem de defensor dos valores do Ocidente, da Liberdade e da Democracia. Para que isto acontecesse era necessário criar um vilão. Um inimigo imaginário, um falso mestre terrorista, que pudesse ser o objecto de foco e, dessa forma, desviar a atenção da realidade complexa das politicas no Médio Oriente. O candidato ideal a vilão era o Coronel Muammar al-Gaddafi, presidente da Líbia. Em meados dos anos de 1980, Gaddafi era uma figura isolada, sem amigos ou influência global.
Em Dezembro de 1985, dois ataques terroristas simultâneos atingiram os aeroportos de Viena e de Roma, matando 19 pessoas incluindo cinco norte-americanos. Quase de imediato o presidente Ronald Reagan anuncia que o Coronel Gaddafi era o responsável pelos ataques. Porém os serviços de segurança europeus, que investigaram os ataques, estavam convencidos que a Líbia não estava envolvida mas sim a Síria. Apesar de não haver evidências do envolvimento de Gaddafi nos ataques, ele não fez questão de se demarcar deles, tornando o caso mais complexo, transformando-o numa crise global.
Este foi o início de uma longa campanha que criou uma poderosa imagem, para o Ocidente, de Gaddafi como um vilão global que liderava um “Estado Criminoso”. O Coronel usou esta publicidade, dada pelos americanos, de forma dramática, construindo para si uma imagem de temido e poderoso líder revolucionário internacional, que tinha por missão libertar os povos oprimidos. Os Estados Unidos e Gaddafi ficavam desta forma presos num ciclo de reforço mútuo e assim foram construindo um mundo ficcional.
Um novo ataque terrorista ocorrido numa discoteca em Berlim Ocidental matou um soldado norte-americano e feriu centenas de outros. De novo não havia provas que suportasse a teoria da culpabilidade de Gaddafi mas havia provas do envolvimento da Síria. Mas tudo foi manipulado pelo governo dos Estados Unidos por forma a que, finalmente, a Líbia fosse atacada. Assim, em Abril de 1986 os norte-americanos demonstraram o seu poder sem ter que enfrentar as perigosas consequências de atacar a Síria.
O que a administração Reagan fez com a Líbia do Coronel Gaddafi foi uma mistura de realidade e ficção. Este cenário construído fazia parte de um plano maior a que os conselheiros do presidente deram o nome de Perception Management (manutenção de percepção). O objectivo era contar histórias dramáticas que capturassem a imaginação da opinião pública, sobre todos os assuntos e países nos quais os Estados Unidos tivessem interesse ou necessidade de manipular. Não interessava se as histórias eram verdadeiras ou não, desde que desviassem a atenção das pessoas e evitassem os políticos de explicar as complexidades do mundo real. A realidade tornava-se um factor cada vez menos importante na política norte-americana nos anos de 1980. Era apenas algo com que tinha que se lidar e tudo era justificável desde que se atingisse o objectivo final.
A maior conquista do Perception Management foi atingida quando, como resultado colateral da invasão do Iraque no pós 11 de Setembro, foi pedida ajuda ao Coronel Gaddafi transformando-o agora como o novo melhor amigo e herói das democracias. Desta vez não apenas os políticos estiveram envolvidos no processo. Para esta redenção ter efeito houve a colaboração de espiões, relações públicas, apresentadores de televisão, académicos e músicos. Todo o establishment ocidental se tornaria cúmplice deste falso mundo.

Vladislav Surkov e o Avant garde da alienação de massas
No final da primeira década do novo século, o Ocidente debatia-se com problemas estruturais e falta de visão política no futuro. A entrega excessiva de poder às instituições financeiras e grandes corporações levaram à despolitização interna da vida pública, enquanto as visões simplistas do mundo foram expostas como perigosas e destrutivas.
Nessa época, na Rússia, havia um grupo de homens que via com igual descrença a política e igual incerteza o futuro; contudo, consideravam que essa circunstância lhes poderia servir de vantagem. Para que isso fosse proveitoso aos seus intentos, eles transformaram a política num bizarro teatro no qual ninguém sabe o que é verdadeiro ou o que é falso. Foram chamados de tecnólogos políticos e eram figuras centrais do estado russo, conselheiros do presidente Vladimir Putin. A eles se deve a manutenção do poder incontestável que Putin exerce há 15 anos.
Alguns deles são da geração de dissidentes da União Soviética dos anos de 1970, fortemente influenciados pelas histórias de ficção científica dos irmãos Strugatsky, que vinte anos depois, na Rússia pós-soviética, controlam os órgãos de comunicação social e usam esse poder para manipular o eleitorado em larga escala. Para eles a realidade é algo que pode ser intervencionada e moldada em qualquer coisa que se pretenda.
Entretanto, um destes tecnólogos emergiu, e as suas ideias tornaram-se centrais na consolidação de Putin no poder. O seu nome é Vladislav Surkov. Começou o seu percurso no mundo do drama, e os especialistas afirmam que ele adaptou ideias do teatro Avant Garde e as levou para o mundo da política. Surkov transformou a política russa numa constante e permanente mudança de peças teatrais. Usou dinheiro do Kremlin para apoiar todos os tipos de grupos, desde organizações de juventude antifascista a Skinheads neonazis; grupos liberais de direitos humanos que atacam o governo a partidos políticos que se opõem ao presidente Putin.
Mas a questão chave é que Surkov não escondeu nenhum dos seus actos. O seu objectivo não é apenas manipular as pessoas, mas ir mais além; pretende destruir a própria percepção do mundo. Um jornalista explicou esta realidade como “uma estratégia de poder que coloca qualquer oposição constantemente confusa numa mutação de forma sem fim, inexorável por ser indefinível”. Entretanto o poder real está noutro lugar, bem escondido do palco em que tudo isto ocorre, exercido sem que ninguém o veja.

o Jogo da pós-verdade
Entretanto, a mesma coisa parece estar a acontecer no Ocidente. É cada vez mais claro que o sistema tem falhas profundas. Todos os meses existem novas revelações sobre o envolvimento dos grandes bancos na corrupção mundial, a fuga aos impostos das grandes corporações ou da vigilância secreta de emails pela Nacional Security Agency. Porém, ninguém é acusado nem condenado exceptuando umas poucas pessoas dos níveis mais baixos. E por trás disto tudo uma gigante iniquidade continua a crescer, garantindo que a estrutura do poder se mantenha a mesma, porque nada pode destabilizar o sistema.
Eis então que a forma que estava a estabilizar se altera de novo. Essa mudança surge dos Estados Unidos durante a campanha presidencial de Donald Trump. Ela seria diferente de tudo o que alguma vez tinha acontecido anteriormente em política. Nada era fixo.
O que tinha dito, quem tinha atacado e como tinha atacado, estava constantemente em mutação e em deslocação. Trump usava discursos que poderiam ter saído dos movimentos Ocuppy assim como, ao mesmo tempo, usava o discurso racista dos extremistas brancos de direita. Desta forma levava os receios das pessoas ao limite, trazendo-os à luz do dia, validando-os como uma opção credível entre os que não acreditavam no sistema estabelecido.
Muitos dos factos que Trump apontou eram falsos, mas isso não lhe importava ou incomodava. Ele e a sua audiência sabiam que muito do que dizia tinha pouca relação com a realidade. Esta foi a derrota que ele infligiu ao jornalismo. A partir do momento em que o trabalho do jornalista consistia em expor as mentiras e assegurar a verdade, a sua irrelevância destruía a sua importância. Este é o jogo da pós-verdade, em que os factos objectivos têm menos importância que os apelos às emoções e às crenças pessoais.
Tanto Donald Trump quanto Vladislav Surkov perceberam que a versão da realidade apresentada pelos políticos já não era credível; as histórias por eles contadas durante décadas deixaram de fazer sentido. Tendo isso em consideração, é possível jogar-se com a realidade, alterando-a e modificando-a, e nesse processo serem minadas as antigas formas de poder, transferindo-as da esfera política para a esfera financeira.

A vida que segue
Enquanto a Síria implode, o mundo vive aparte da realidade desta guerra e desta região. A isso não é estranho o facto de não interessar a nenhum dos envolvidas o real conhecimento dos factos e para tal no campo de batalha estão a ser testadas as mais recentes formas de controle, alienação e desinformação. A Rússia, por exemplo, está a aplicar na Síria um formato de guerra que Surkov testou na Ucrânia durante a crise da Crimeia. O Nonlinear Warfare (conflito não-linear) é um novo tipo de guerra na qual nunca se sabe quem realmente é o inimigo. A intenção não é ganhar a guerra, mas usar o conflito para criar um permanente estado de destabilização de percepção, por forma a gerir e manter o controlo da situação. A verdade é que até agora ninguém sabe qual a justificação dos russos se envolveram directamente nesta guerra.
Paralelamente a todas estas ocorrências reais, o ciberespaço, antes tido como um território libertário e livre, uma renovada esperança para a sociedade decorrente da contracultura dos ácidos dos anos 60, tornou-se na mais fértil ferramenta de alienação e controle alguma vez criada. É de tal forma eficiente que são as pessoas se disponibilizam para serem objectos de controle.
A Inteligência Artificial foi criada para responder às nossas necessidades narcísicas, satisfazendo dessa forma o nosso individualismo crescente, fruto desta sociedade de início de milénio. Algoritmos capazes de prever as nossas reacções ajudam-nos a criar laços confortáveis, com respostas de satisfação imediata e sem qualquer tipo de contraditório. É um assistente que nos compreende e nos valoriza. Conformamo-nos com a atenção que nos é dada por uma máquina e, em contrapartida, cedemos-lhe o que de mais íntimo temos, a nossa individualidade, sem nos questionarmos ou preocuparmos com o destino final desses dados.
O novo processo de controle já está em marcha, e tudo leva a crer que estamos prontos para o aceitar e assumir como parte integrante da nossa construída, frenética e ansiosa existência. Marisa canta que “é a vida que segue e não espera pela gente” e ninguém quer ficar fora dessa vida, porque cada vez menos gente tem a capacidade de criar a sua.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Manual Cinema - Teatro e Cinema em Tempo Real


A companhia americana “Manual Cinema” apresentou-se pela primeira vez em Portugal com o seu mais recente espetáculo, “Ada/Ava”, nos dias 18, 19 e 20 de Maio no teatro São Luiz.
      O grupo com sede em Chicago cria uma metamorfose entre o cinema e o teatro, num espetáculo ao vivo onde a narrativa é dada pela silhueta dos atores bem como pela animação instantânea criada pelos restantes membros do casting, através da projeção de  marionetas e cenários 2D.  Em cada espetáculo é comum a utilização de técnicas como a projeção de marionetas, cenários e sombras através de múltiplos retroprojetores e a encenação através das silhuetas dos atores a serem filmadas por detrás de um pano de fundo branco. Nesse pano de fundo branco são projetadas todas as componentes visuais do espetáculo que vão criar uma espécie de cinema de animação em tempo real, acompanhado de música ao vivo que atua em simultâneo com a narrativa.
     No seu mais recente espetáculo “Ada/Ava” , a companhia retrata a história de duas irmãs gémeas que vivem os ultimos momentos das suas vidas numa casa-farol. Com a morte de Ava, Ada irá passar por uma aventura que retrata assuntos como a identidade pessoal, a morte e a ressurreição numa atmosfera bastante triste e negra.
     Nos seus mais recentes espetáculos, o grupo realiza a encenação com sombras e o trabalho de retroprojetores ao olhar do próprio público no centro do palco, encimados por uma tela onde passa a animação que é criada em tempo real. No entanto, nos primeiros espetáculos o elenco permanecia atrás das cortinas a realizar todo o processo de encenação, o que causava a certos espetadores a incerteza de terem pago para verem a projeção de um filme de animação pós-produzido ou um espetáculo encenado na própria altura.
     Após cada espetáculo o grupo de atores, músicos e encenadores permite ao publico subir ao palco para ver de perto as marionetas, os adereços, os retroprojetores e para poder perceber todo o funcionamento do espetáculo. 



O Biopoder d’ A Ilha


    A Ilha, publicado em 1962, foi o último livro que Aldous Huxley publicou. De gênero ficção utópica, científica, retrata a sociedade perfeita aos olhos do autor como também o conceito de biopoder.

    Um jornalista, Will Farnaby, naufraga na ilha Pala, uma ilha regida por crenças assentes no hinduísmo e no budismo que atrai a inveja do mundo exterior. Novas tecnologias, novas educações e novas maneiras de viver estão presentes neste novo mundo e cabe a Will descobrir o que está errado na sociedade e no homem moderno.

    Michel Foucault defende que o biopoder não é focado no individuo em si mas sim em algo coletivo. Este é dividido entre anátomo-política do corpo e biopolítica da população: anátomo-política consiste nos dispositivos institucionais que permitem controlar o espaço e tempo, como as escolas, hospitais, as fábricas e as prisões; a biopolítica da população volta-se à regulação das massas, utilizando práticas que permitem gerir taxas de natalidade, epidemias e aumento da longevidade. Foucault defende que para uma sociedade puder evoluir é necessário existir uma categoria de “sujeito” onde sejam exercidos uma nova forma de poder. O poder disciplinar nasce como uma máquina que transforma o corpo do homem para assim dar a possibilitação de ser um instrumento de interesse económico.

    Na obra de Huxley é procurada a perfeição através de diferentes formas de tecnologia e avanços tanto na mentalidade como na interação do ser humano. Pode-se, desta maneira, relacionar com a individualização do sujeito quando este é procurado pelas suas ações no meio em que está inserido. Por exemplo, no livro, a educação é bastante valorizada pois é esta que vão formar o caráter e molda a maneira como a pessoa se irá tonar no futuro, logo, educa-se para a liberdade e felicidade. A educação visa desenvolver a diversidade dos indivíduos de acordo com as potencialidades de cada um de modo a transformá-los em seres humanos desenvolvidos, livres e felizes. De uma maneira indireta, acaba por ser manipulado o pensamento para um bom funcionamento da sociedade e instala-se um “biopoder” para a política de vida.





"Hyper", hipermodernismo e bio-poder

Vou elaborar este trabalho, relacionando uma performance de dança contemporânea com os conceitos de biopoder (Foucault) e hipermodernismo (Lipovetsky).
A peça "Hyper", apresentada no Festival de Dança Contemporânea 2018, é baseada na obra "Os Tempos Hipermodernos" (2011) do sociólogo francês Gilles Lipovetsky (1944).
O hipermodernismo é nos apresentado como uma construção sociológica que procura refletir sobre uma época sem espaço para a descoberta e novas experiências, reinada por um ritmo frenético, onde tudo acontece quase simultaneamente. Nesta era impera a preocupação e incerteza sobre o futuro em que nos encontramos apegados à ideia de conservação e obececados pela passagem do tempo. Assim, vivemos de forma a precaver o amanhã, um amanhã onde poderemos finalmente usufruir de tudo o que não temos tempo para usufruir hoje.
Ora é também esta transformação do natural pelo cultural que define o bio-poder. De forma algo vaga, a forma de viver neste tempo hipermoderno é alterada pela obcessão pela consevação e a esperança de um amanhã melhor. Vivemos então inundados de maneiras de "durar mais tempo", constantemente estimulados por um ritmo incessante de stress e preocupação. Tudo para assegurar um futuro calmo, uma boa reforma, onde vamos viver verdadeiramente e onde depositamos todas as esperanças de felicidade. A nossa vida, em todos os aspetos, é alterada por estas regras sociais. Estudar certas áreas para arranjar um bom trabalho e conseguir fornecer para a família. Trabalhar muito para assegurar uma boa reforma. Ter filhos para ter alguém que cuide de nós, quando velhos. Dietas, exercíco fisíco e suplementos anti-oxidantes para viver mais uns anos. Vidas cheias de stress e nervos, tudo para um amanhã feliz, que raramente existe. Os nossos corpos são alterados por estas regras sociais. Mais ataques cardíacos do que em qualquer momento conhecido na história, mais doenças mentais relacionadas com stress (como ansiedades, depressão e sindromes compulssivos) e esgotamentos nervosos cada vez mais comuns. Estas "social boundaries" e "guidelines" para uma boa vida são, apenas, contruções sociais que nos fazem viver de maneira diferente, longe da nossa natureza. 
A criação coreográfica de Ana Francisca Almeida expressa, através de movimentos rápidos, quedas bruscas e saltos inesperados, uma tensão enorme proveniente desta forma de viver que nos destrói, aos poucos, parecendo impossível, no entanto, fugir dela. As quatro intérpretes dançam, com solos, duetos e em grupo, num estilo mais lírico de Merce Cunningham.